O logo da sueca Saab adjacente ao da brasileira Embraer, na lateral de um imenso hangar, entrega o jogo: é neste complexo em Gavião Peixoto, a pouco mais de 300 km de São Paulo, que “moram” as primeiras das 36 unidades dos caças Gripen da Força Aérea Brasileira, encomendados por um custo aproximado de R$ 20 bilhões.
Mas não foi para ver caças que dirigimos as três horas até aqui, apesar dos valores e velocidades que veremos ao longo do dia serem de fato mais próximos do reino aeronáutico do que do nosso dia a dia automotivo. Finalmente, mais de 15 anos após minha primeira tentativa de obter credenciamento, tenho a oportunidade de cobrir uma Driver Top Speed Cup, evento cercado de mística dentro do universo do automobilismo brazuca.
Imagem: Cassio Cortes
Por que tanta seletividade de acesso? Primeiramente, não custa lembrar, estamos em um complexo que seus proprietários provavelmente adjetivam como uma “área de segurança nacional”. Concentrando a fabricação militar da Embraer, a planta de Gavião Peixoto é, na prática, o mais próximo que temos no Brasil da célebre “Área 51” da USAF americana: se segredos tem a aeroindústria bélica brasileira, é aqui que eles estão guardados.
Segundamente: o perfil de brasileiros proprietários de supercarros custando múltiplos de sete dígitos é bastante... eclético. E dentro desse ecletismo, há quem prefira não aparecer. Assim, a Driver, revista especializada em supercarros, só credencia para cobertura de imprensa profissionais que tenham sido indicados por uma das importadoras e preparadoras apoiadoras do evento. Em resumo: jornalistas e conteudistas ditos “de confiança”.
Surgida em 2011, a Top Speed Cup conseguiu abrir para os donos de superesportivos as portas da grande pérola residente em Gavião Peixoto: a pista de testes de pousos e decolagens da Embraer. Com 4.967m de comprimento e 95m de largura, é a maior das Américas e a quinta maior do mundo. Fun fact: trata-se da única pista de pouso homologada pela NASA no Hemisfério Sul para receber pousos do ônibus espacial, em caso de imprevisto. Para comparação, a pista principal do aeroporto de Congonhas possui 1.940 m de extensão e apenas 45m de largura.
Possuir um superesportivo preparado, muitas vezes com mais de 1.000 cv de potência – após um dia inteiro de observação, arrisco dizer que nenhum dos 120 carros inscritos na Top Speed Cup de 2023 está original como saiu da fábrica, ou seja, todos possuem algum ou vários tipos de upgrades de performance – é ao mesmo tempo um privilégio e um “problema”: onde, afinal, sentir na prática o resultado dos milhões de reais investidos para se ter acesso ao ápice de desempenho automotivo que a engenharia humana é capaz de produzir?
Na Alemanha, a resposta seria em uma autobahn sem limite de velocidade, em um horário sem trânsito. No Brasil, a única resposta talvez seja o Aeródromo de Gavião Peixoto.
Imagem: Cassio Cortes
“É o playground perfeito para os meus clientes”, explica Fernando Leão, proprietário da Pit Stop Shop, uma das principais preparadoras de supercarros do país, localizada no bairro da Lapa, em São Paulo. “Nenhuma estrada no Brasil, independente da questão dos limites de velocidade, comporta esse nível de performance. Felizmente, na Top Speed Cup meus clientes realmente conseguem experimentar na prática o que eles me pagaram para poder experienciar. Aqui, eu realmente ‘cumpro’ o que os números de potência no dinamômetro da oficina prometeram”.
E a Top Speed Cup é uma competição, literalmente, de números. Leva o troféu de vencedor para casa quem acelerar em linha reta para registrar as maiores velocidades em três radares colocados na pista, nas marcas de meia milha (804m), 1 milha (1.609m) e 2 milhas (3.218m).
Houve um tempo em que a chance de exceder a barreira dos 300 km/h era o grande atrativo de um evento como esse, mas a evolução vertiginosa da tecnologia nos últimos anos tornou essa marca “carne de vaca” na Top Speed Cup. O carro que mais chama a atenção do público é uma Lamborghini Huracán Performante em um roxo espetacular, que chega a exceder a marca de 400 km/h (!) em uma passagem.
Sob a tenda da Pit Stop, debaixo de um calor de mais de 30 graus, os dois carros mais velozes em ação geram números, digamos, mais humildes: 371 km/h é o recorde obtido por um dos dois Porsche 911 GT2 RS presentes preparados por Fernando. Tendo obtido meu “recorde pessoal” de velocidade máxima justamente ao bater 301 km/h ao volante de um GT2 RS 100% original em uma autobahn germânica, posso afirmar: é preciso bem mais do que os 700 cv que o GT2 traz de fábrica para se chegar a velocidades como 370 por hora.
Chegar aos 300 km/h em um carro de rua – mesmo sendo ele o 911 mais potente da história da Porsche, como o GT2 RS – é um processo dolorosamente difícil e, acima de uns 270 km/h, lento. O crescimento do arrasto aerodinâmico é exponencial, e são preciso doses cavalares de, com o perdão da redundância, cavalaria para superar os 300 com fôlego de aceleração sobrando para se rumar até 350 ou 400 km/h.
Se o seu bólido tem menos de 1.000 cv, nem apareça na Top Speed Cup com esperanças de vitória. Injetar a potência extra através de preparação altamente sofisticada em carros por si só já extremamente exóticos é o (lucrativo) negócio da Pit Stop e de mais um punhado de oficinas que operam nesse Olimpo da preparação nacional, quase todas na cidade de São Paulo. Não raro, proprietários endinheirados de Norte a Sul do Brasil despacham seus xodós em caminhões até SP para receberem um “talento” em preparadoras como a Pit Stop, a BTS (especializada principalmente em Mustangs), a PDK e outras, todas com seus respectivos stands montados na pista auxiliar do Aeródromo para fornecer suporte técnico aos clientes-pilotos entre cada “puxada”.
Com um público tão estratificado financeiramente, os stands das preparadoras recebem a companhia de stands de vendas – de importadoras de supercarros a incorporadoras como a FG Empreendimentos, além da própria Embraer –, todos ansiosos para aproveitar a euforia ainda pulsante de quem acabou de acelerar a mais de 300 km/h para fechar negócio em (mais) uma Ferrari, uma cobertura em Balneário Camboriú ou um jatinho Phenom 300. Praticamente nenhum dos participantes está particularmente cansado da viagem até Gavião, aliás: a Driver disponibiliza para os inscritos um voo fretado desde o Campo de Marte ao custo de R$ 1.700 por pessoa. Os supercarros chegam à Embraer separados, de plataforma.
O sol começa a descer no horizonte, e chega minha hora de voar baixo. Capacete afivelado, embarco em uma Lamborghini Urus com um kit Mansory instalado pela Pit Stop – “Só o kit custa 200 mil Euros, então meus clientes preferem importá-lo em separado para que eu instale aqui no Brasil. Sai bem mais barato”, revela Fernando.
A potência da “Urona” aferida em dinamômetro passa de 800 cv, e o carro ainda está acelerando com força quando tiramos o pé a 290 km/h, seguindo a recomendação do nosso host: espalhafatoso e cheio de apêndices, o kit aerodinâmico da Mansory foi pensado muito mais para impressionar modelos russas saindo da balada em Dubai do que para oferecer performance (e não sair voando) acima de 300 km/h. Nossos quase-300 podem parecer pouco por aqui, mas não custa lembrar que uma Urus é um SUV de mais de 2 toneladas, capaz de carregar cinco pessoas e bagagem no mais absoluto conforto.
O retorno na contramão dos 5 km de pista, a 80 km/h, passa comicamente devagar. Retomando o lugar na fila para mais uma puxada, encontro o simpático empresário Carlos Oliveira. Aos 69 anos, o paulista do ramo de frigoríficos é um dos pilotos de idade mais avançada competindo nessa Top Speed Cup, o que não impediu “Seu Carlos” de passar de 369 km/h em sua GT2 – o único de seus três Porsche 911 realmente “fuçado” para esse tipo de competição.
Em um dia de sol escaldante no meio de um feriadão, Oliveira poderia estar passando um relaxante domingão à beira-mar em praticamente qualquer lugar do mundo que quisesse, ao invés de estar derretendo sob o calor no centro de um verdadeiro oceano de asfalto quente irradiante. O sorriso debaixo do capacete após bater seu recorde pessoal explica mais sobre as escolhas do empresário do que qualquer palavra.
“Isso aqui é uma adrenalina como nenhuma outra nessa vida”, resume. “Saio daqui renovado”.
Matéria elaborada por Cassio Cortes.
Instagram: @cassiocortes
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